terça-feira, 10 de agosto de 2010

O motorneiro 818

Conto do jornalista e filósofo José Antônio Moraes de Oliveira.

Altamiro de Jesus colocou o quepe com o número 818, olhou-se mais uma vez ao espelho, pegou a marmita e saiu para a rua. Ainda estava escuro, os cachorros da vizinhança latiam à sua passagem e, ao longe, os galos cantavam nas chácaras no morro da Glória. Às 6 horas marcou o ponto e estava sorrindo quando subiu no 317, com o “T” de Teresópolis no letreiro. Era a linha que mais gostava, pois conhecia todos os passageiros pelo nome.
***
Era noite quando o 317 entrou na Carris, seguindo os trilhos até os fundos do pátio, já ocupado por dezenas de carros, enfilerados um ao lado do outro. Alguns eram velhos conhecidos – como o “gaiola” 123, da linha Duque, o 18, com portas automáticas, que fazia as linhas Gloria e Navegantes e, mais adiante, o Bradley, de número 12, que o povo apelidara de “Coca Cola”.
Altamiro deixou escapar um meio-soluço, mas sabia que não podia fraquejar agora. Firmou os passos até o escritório, onde entregou a manivela do 317. Ao sair, espiou a folhinha na parede, que marcava 8 de março de 1970. Era o seu último dia como motorneiro.
A festa até que foi bonita, com discurso do prefeito e homenagens aos funcionários mais antigos. Muitos eram de sua turma, como o Abilio dos Santos , que era cobrador quando começaram juntos na linha Teresópolis. Também lá estava o grandalhão Lopez Chaves, que todos diziam que tinha sido campeão de boxe quando moço.
Garções de casaco branco serviam salgadinhos, doces e refrigerantes, mas Altamiro não conseguia sentir o gosto do que mastigava. Serviu-se de gasosa e observou os colegas que faziam brindes com guaraná e se abraçavam alegres, contando as velhas estórias de sempre. Como a do fiscal Adãosinho, da linha Petrópolis, que deixou a mulher e dois filhos para se juntar com uma viúva rica do Bom Fim. Ou do motorneiro mulato de nome Seixas, que entrou nos trilhos errados, no fim da linha Gasômetro, quase provocando um desastre.
No entanto, Altamiro se sentia distante, meio aturdido – sua mulher sempre lhe falava que os bondes não iriam durar muito. E acontecera exatamente como ela previra. Agora, ia ficar furiosa ao saber que ele não aceitara a vaga na recebedoria, onde se contava e conferia o dinheiro das passagens. E que, ao contrário de tantos outros, não quis fazer o curso de reciclagem para motorista dos novos ônibus a diesel.
Ele disse a si mesmo que sempre gostou de ser motorneiro, a única coisa que sabia fazer direito. Seus carros sempre cumpriam os horários da planilha e nunca sofreram acidente. Mas agora, acabaram-se os bondes, estava sem emprego e sem saber o que fazer da vida.
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Apalpou o bolso do casaco de brim e sentiu o envelope com seu último salário e mais o pagamento da indenização. Talvez quando chegasse em casa com todo aquele dinheiro, a mulher entendesse melhor o que estava acontecendo.
Iria explicar que não era o único naquela situação. Nos últimos meses, vários motorneiros e cobradores haviam sido dispensados ou chamados para trabalhar nos novos ônibus, que estavam substituindo os bondes.
Altamiro saiu para o pátio e respirou com gosto o ar da noite. As luzes estavam todas acesas e animados grupos saíam rumo aos bares da João Pessoa, para tomar “a última”. Recusou o convite para acompanhá-los, caminhando sem pressa até os fundos do pátio.
De repente, sentiu vontade de subir mais uma vez nos bondes, nos quais percorrera a cidade de ponta a ponta. Talvez fosse a última oportunidade, pois ouvira nas oficinas que todos seriam removidos para o desmanche, onde seriam vendidos como ferro-velho.
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Não conseguiu chegar até os fundos do pátio. Sentiu uma pontada forte no lado do peito e precisou sentar para retomar o fôlego. Olhou para os bondes estacionados, silenciosos e com todas as luzes apagadas, mas não viu o 317 e nem o 123. Aos poucos, a tontura passou. Ele caminhou até a saída e foi embora sem olhar para trás.

Fonte: Coletiva.net.

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